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O dilema da tarifa zero é garantir transporte para todos

Nos últimos dias, a tarifa zero está em pauta. Políticos de diferentes tendências têm se posicionado a favor do tema. Interessante notar que PT e PL que protagonizaram um acirradíssimo embate eleitoral são os primeiros a adotarem essa política em âmbito municipal, em Maricá (RJ) e de Vargem Grande Paulista (SP), respectivamente. Ambos defendendo uma pauta em comum.

Convido os leitores a deixarem a política partidária de lado e refletirem sobre o que está em jogo no debate sobre transporte gratuito. A razão deste debate deve ser qual o papel do transporte coletivo em nossa sociedade. Esse serviço público é um direito social e deve ser encarado como um bem comum, ofertado a todos os cidadãos, pois está vinculado ao acesso à cidade e à democracia.

Atualmente, temos a gratuidade no transporte em mais de 50 cidades no Brasil, além de experiências em implantação na Alemanha, Espanha, Luxemburgo, Portugal e EUA. Washington-DC acaba de aprovar a tarifa zero nos ônibus da cidade. Todas as experiências, nacionais e internacionais, têm em comum o desafio de ampliar o número de passageiros que estava em queda muito antes da Pandemia da COVID-19. Com a pandemia ficou escancarado que o acesso ao transporte é socialmente excludente, racialmente problemático, impacta diretamente o acesso aos serviços públicos, conforme estudos do Labcidade[1] e do IPEA[2]. Recentemente, a gratuidade no dia da eleição evidenciou a essencialidade desse serviço para garantir maior democracia no País[3].

Sendo um serviço tão essencial, por que adotamos um modelo onde a discussão se baseia no preço da tarifa?

Nos casos em que a Polo Planejamento estudou a implantação de tarifa zero, o princípio fundamental era criar um sistema para a cidade com maior disponibilidade, ampliando a oferta espacialmente e nas faixas horárias, reduzindo (em casos específicos) ou mesmo extinguindo totalmente a cobrança na catraca. Conforme Avelleda escreveu para O Globo[4], tarifa zero já existe para os usuários de automóveis, quem é barrado por catracas pelo acesso a cidade é o usuário do transporte coletivo.

O conceito de que transporte é custo é uma falácia, transporte é uma atividade social. Conforme descrito pela equipe do IDEC em artigo para Folha, ele é atividade fundamental para estimular a economia local e reduzir as desigualdades socioespaciais[5]. Ao visualizar apenas custos, ficamos presos na armadilha da austeridade, buscamos eficiência com redução de custo e como resultado induzimos uma redução do serviço e diminuímos a disponibilidade. A Pandemia nos demonstrou que a redução da disponibilidade é muito problemática, colocou muitas pessoas em risco e não solucionou o problema de remuneração do sistema.

Precisamos inovar o modelo para garantir a viabilidade do serviço de transporte.

Para viabilizar o financiamento devemos sair do senso comum. O transporte deve ser remunerado, seja no caso de prestação pública ou privada. Porém precisamos rediscutir a governança e principalmente o modo de arrecadação e financiamento do sistema. Devemos avançar para um modelo em que a remuneração do prestador do serviço seja separada da arrecadação.

Cobrar apenas de quem utiliza gera um encarecimento do serviço e uma redução na arrecadação. Podemos fazer um paralelo com a educação pública. Imagine se os estudantes do ensino público pagassem todo dia seu acesso a escola. Esses estudantes poderiam não conseguir pagar por diversos motivos, resultando na necessidade de tarifas mais altas. Caso um estudante faltasse, o custo dele seria redistribuído pelos outros, já que o custo precisa ser diluído pelos usuários. O fato de uma cobrança tão fragmentada, por estudante e por dia, ampliaria significativamente os custos de arrecadação e controle. A opção para educação foi torná-la universal e gratuita, toda a sociedade paga pela disponibilidade. Isso não invalida ou reduz o desafio de discutir a qualidade.

Pensando no transporte, assim como funciona na educação, deveríamos ter o sistema totalmente financiado pelo Estado ou no mínimo com recursos arrecadados por ele e repassados ao prestador do serviço.  Em São Paulo, segundo a SPTrans, o custo do transporte será de R$ 12 bilhões em 2023, dos quais apenas 40% são arrecadados pela tarifa. Cobrar diariamente do passageiro não me parece a melhor lógica para a arrecadação deste déficit do financiamento. Por que não cobramos de toda a sociedade pela disponibilidade? Assim garantiríamos um pagamento constante de uma base arrecadatória maior.

Partindo do princípio que hoje o município já financia 60% do sistema, podemos fazer algumas rápidas avaliações. Se adotássemos um modelo como o implantando no município de Vargem Grande Paulista, de cobrança por trabalhador, em uma cidade com 5,5 milhões de trabalhadores, precisaríamos que cada trabalhador contribuísse com menos de R$ 75 por mês. Ou se cobrássemos por domicílio, em uma cidade com cerca de 3,5 milhões de domicílios precisaríamos que cada casa contribuiria com cerca de 115,00 por mês. Ambos os valores não me parecem de contas absurdas, o que falta é vontade para estruturação de uma política pública inovadora.

Podemos discutir diversas formas de aprimorar essas contas, inclusive de torná-las mais progressivas. Outro exemplo, Guararema, aprovou uma legislação para instituição da tarifa zero em que isenta micro e pequenas empresas ou empresas com menos de 20 funcionários. A própria cobrança por domicílio pode estar vinculada a condição da residência ou características de isenção do IPTU, por exemplo. Contudo, precisamos criar modelos diferentes de arrecadação, pois atual já se demonstrou ineficiente.

O transporte gratuito não só é viável como é essencial para garantirmos a sociedade que desejamos.

O modelo de arrecadação é a ponta do iceberg de nossos problemas federativos na mobilidade. O Idec, acompanhado de outras instituições, vem propondo esse debate sugerindo um Sistema Único de Mobilidade[6]. Assim como para saúde, um sistema tripartite que melhore o financiamento e a responsabilidade dos serviços, deve ser a pedra chave de uma repactuação da mobilidade.

Precisaremos de estudos para saber como enfrentar esse desafio. Com certeza problemas como desenho das linhas ou qualidade dos serviços atuais deverão ser repensados através de outra lógica de estruturação do sistema. Em locais onde a gratuidade foi implantada o uso do transporte coletivo subiu até quatro vezes, demandando novas reinvindicações para a mobilidade. Olharmos para a viabilidade de sistemas gratuitos com as lentes dos sistemas atuais apenas distorce a nossa compreensão. A mudança do modelo de arrecadação demandará estudos sobre as novas necessidades e usos do sistema, consequentemente novas linhas e condições de oferta.

O ponto mais importante é termos claro para quem estamos desenhando esse novo modelo. Segundo a última pesquisa OD do Metro, população com renda inferior R$ 3.800 faz em média 1,9 viagem por dia, ou seja, nem todos conseguem se deslocar (ida e volta) uma vez por dia. Enquanto isso, população com renda superior a R$ 11.500 faziam em média 2,8 viagens por dia. Nosso desfio é reverter esse quadro, construir um modelo que não seja excludente a princípio pelo custo!


[1] Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19 – LabCidade (usp.br)

[2] Acesso a Oportunidades (ipea.gov.br)

[3] PL pede, mas TSE nega limite a transporte gratuito na eleição | Nexo Jornal

[4] A Tarifa Zero já existe | Artigos | O Globo

[5] A tarifa zero para os ônibus de São Paulo seria uma política correta? SIM – 25/11/2022 – Opinião – Folha (uol.com.br)

[6] Manifesto da sociedade pede a criação do Sistema Único de Mobilidade | Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

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