O uso do espaço público está diretamente relacionado ao conceito de direito à cidade. Segundo o Instituto Pólis, o direito à cidade é um direito humano e coletivo, que diz respeito tanto a quem nela vive hoje quanto às futuras gerações e está relacionado com o compromisso ético e político de defesa de um bem comum essencial a uma vida plena e digna em oposição à mercantilização dos territórios, da natureza e das pessoas.
Embora o conceito venha sendo bastante discutido no meio acadêmico e dentro da formulação de políticas de planejamento urbano, é importante pararmos um momento e refletir: a cidade é experimentada por todos os grupos de forma igualitária? As demandas, anseios e expectativas são iguais?
É com o olhar voltado para estes questionamentos que introduzimos a questão do uso do espaço público pelas mulheres. Os problemas de infraestrutura, mobilidade, acesso à moradia, pobreza e violência são comuns a muitas cidades, mas atingem de forma diferente as mulheres e influenciam diretamente a forma como elas ocupam este espaço.
Segundo o relatório publicado em 2012 pela UN-Habitat “Gender Issue Guide: Urban Planning and Design”, mulheres percebem e têm experiências diferentes sobre o espaço público. Além disso, segundo Sader (2019) a movimentação das mulheres nas cidades dá-se de um modo bem menos linear que a dos homens. Enquanto os trajetos deles muitas vezes se resumem entre casa-trabalho-casa, as mulheres têm, no meio desse percurso, paradas na escola dos filhos, no supermercado, na casa dos seus pais, com um ir e vir muito mais complexo. Jane Jacobs (1961) já tratava da questão, denunciando o fato de que os projetistas e planejadores urbanos, que eram em sua maioria homens, criavam planos e projetos que as excluíam como participantes da vida cotidiana.
Apesar do consenso sobre a questão de a melhoria da infraestrutura dos espaços urbanos possibilitar o aumento da qualidade de vida da população em geral, questões como a segurança e a percepção da cidade são diferentes para mulheres e homens. Segundo o estudo Género y Transporte Urbano: Inteligente y Asequible (GTZ, 2017), aplicar uma perspectiva de gênero à mobilidade, entre outras funções, “atende a demanda por serviços de transporte através de uma melhor compreensão das diferentes necessidades, preferências e limitações dos usuários finais, tanto homens como mulheres”.
Em outras palavras, políticas que considerem as especificidades de gênero são necessárias pois são capazes de incluir, consequentemente, outros grupos minoritários que também compartilham das mesmas dificuldades. Com isso, não se quer dizer que a presença de mulheres torna o lugar mais seguro ou acessível, mas que, de modo geral, um local seguro e acessível é aquele capaz de atrair também o público feminino.
Calçadas são insuficientes para quem precisa de ajuda, para passar com carrinhos de bebê ou com cadeiras de roda por exemplo. Outro exemplo pode ser observado em paradas de ônibus que não são projetadas para evitar longas caminhadas até centros comerciais e de emprego. Além de serem um fator de restrição para pessoas com mobilidade reduzida ou idosas, também podem ser especialmente perigosas à noite, no caso de caminhos sem supervisão ou mal iluminados. Assim, pensar em espaços agradáveis e seguros da perspectiva de gênero tende a atrair não somente mulheres a estes espaços, que tendem a ser ocupados pela população como um todo e constituem um ambiente mais seguro.
Além disso, é preciso considerar, na elaboração de políticas públicas de transporte e mobilidade, que os padrões de deslocamento tendem a ser diferentes entre mulheres e homens (BID, 2015). De modo geral, mulheres dependem mais do transporte público e tendem a fazer mais viagens para diversas finalidades. A complexidade dos padrões de deslocamento das mulheres está relacionada ao fato de que elas tendem a fazer mais trabalho doméstico e cuidar das pessoas de casa em comparação com os homens e, assim, precisam combinar o trabalho diário com idas à escola, à creche, ao centro de saúde, às compras. Alguns trabalhos já chamam essas viagens de “deslocamentos do cuidado” (SVAB, 2016). Assim, a probabilidade de as mulheres se deslocarem para acompanhar outras pessoas da família, como crianças e idosos, também é maior.
Portanto, além de reconhecer as diferenças entre homens e mulheres quanto aos padrões de deslocamento, políticas de mobilidade inclusivas precisam conter ações preventivas contra a violência de gênero no transporte público, pois as mulheres estão mais expostas ao assédio sexual do que os homens, o que as impede de ter acesso igual à mobilidade.
Apenas citando alguns exemplos, na Cidade do México mais de 65% das mulheres que usam o transporte público já sofreram assédio sexual durante uma viagem (BID 2015). Na Austrália, uma pesquisa com meninas constatou que 30% delas limitam seus deslocamentos e evitam o transporte público após escurecer se estiverem desacompanhadas (Plan 2016, apud DUREN, 2018). Como as mulheres tendem a ter menos acesso a automóveis por motivos culturais e socioeconômicos, dependem mais do transporte público do que os homens. Na América Latina e Caribe, em média, mais de 50% dos usuários de transporte público são mulheres e, no caso da Argentina, as mulheres representam mais de 60% dos usuários de transporte público na cidade de Buenos Aires (BID, 2017 apud DUREN, 2018). Contudo, a maioria dos sistemas de transporte público existentes na região não é projetada levando em consideração as necessidades das mulheres (BID, 2015).
Pensar o planejamento urbano e o desenho de espaços públicos a partir desta perspectiva vai ao encontro de ideias de desenvolvimento social sustentável propostos pela ONU. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11, “Cidades e comunidades sustentáveis”, visa aumentar a “urbanização inclusiva e sustentável e as capacidades para o planejamento e gestão de assentamentos humanos participativos, integrados e sustentáveis em todos os países” (ODS 11, meta 11.3). O indicador 11.3.2 mede a participação da sociedade civil no planejamento e gestão urbana, abarcando inclusive os grupos de mulheres, e a meta 11.7 promove o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, particularmente para as mulheres e crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência.
Além dos ODSs, a Nova Agenda Urbana, adotada no Equador em 2016 por todos os Estados Membros, delineia a visão para o desenvolvimento urbano até 2030 e inclui em seus objetivos que as cidades “alcancem a igualdade de gênero e empoderem todas as mulheres e meninas, assegurando uma participação integral e efetiva, além de direitos iguais em todos os domínios e na liderança em todos os níveis de tomada de decisão, e garantindo oportunidades de emprego digno e remuneração igual para trabalho igual, ou trabalho de valor igual, para todas as mulheres, ao prevenir e eliminar todas as formas de discriminação, violência e assédio contra mulheres e meninas nos espaços públicos e privados” (13.c).
Por fim, o tema do planejamento urbano e desenho de espaços públicos para as mulheres não se esgota no reconhecimento de suas necessidades. Podemos compreender o pensamento dos espaços urbanos a partir do olhar das mulheres como um importante ponto de partida para a construção de cidades mais igualitárias, justas e inclusivas além de alternativas mais sustentáveis de transporte e mobilidade. Entretanto, para que estas metas sejam alcançadas, é importante incluir as mulheres nos processos participativos e decisórios, inclusive no planejamento e desenho destas políticas e planos.
Referências:
Banco Interamericano de Desenvolvimento — BID (2015). The relationship between gender and transport. 72 páginas.
DUREN, Nora Libertun de; et al. As desigualdades de gênero nas cidades. Banco interamericano de Desenvolvimento, Urban 20, 2018.
GTZ. Género y Transporte Urbano: Inteligente y Asequible. Proyecto Sectorial Servicio de Asessoría em Política de Transporte, GIZ – Deutsche Gesellschaft Techniche Zusammenarbeit, 2017.
JACOBS, Jane. The Death and Life of Great American Cities, 1961.
SADER, Ana Paula Cabral; NICOLETE, Jamilly Nicácio; GOMES, Márcio Fernando. As Mulheres e o Direito à Cidade: gênero e espaço público na cidade contemporânea. Marília, Educação em Revista, Edição Especial, v.20, p. 99-110., 2019.
SARAIVA, Ágar Camila Mendes. Gênero e Planejamento Urbano: trajetória recente da literatura sobre essa temática. São Paulo, XVII ENAPUR, Sessão Temática 10: Perspectivas para o Planejamento Urbano e Regional, 2017.
SOARES, André Geraldo; Xavier, Giselle Noceti Ammon. Gênero e Mobilidade na ótica de ciclistas florianopolitanas. Ciclofemini. Florianópolis, 2017. Disponível em: http://ciclofemini.com.br/ciclofemini/mulheres-ciclistas-agentes-de-transformacao/genero-e-mobilidade-na-otica-de-ciclistas-florianopolitanas-por-andre-geraldo-soares-e-giselle-noceti-ammon-xavier/ Acesso em: 09 de agosto de 2021.
SVAB, Haydée. Evolução dos padrões de deslocamento na região metropolitana de São Paulo: a necessidade de uma análise de gênero. 2016. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Transportes) – Escola Politécnica, University of São Paulo, São Paulo, 2016. Acesso em: 2021-08-10.
UN-Habitat. Gender Issue Guide: Urban Planning and Design. UN-Habitat, Nairobi, Dezembro de 2012.