O espaço urbano não é neutro e a percepção da cidade depende de local que o indivíduo ocupa na sociedade. A existência e a circulação pela cidade não é experienciada da mesma maneira por um idoso, uma criança ou uma pessoa com deficiência física, por exemplo. Do mesmo modo, homens e mulheres experienciam a cidade de formas diferentes. Mesmo no contexto atual de forte participação das mulheres no mercado de trabalho e nos espaços urbanos, elas ainda experimentam a cidade através de um conjunto de barreiras físicas, sociais, econômicas e simbólicas que moldam suas vidas diariamente. Muitas dessas barreiras passam despercebidas pelos homens, que em seu conjunto de experiências raramente lidam com as mesmas barreiras que as mulheres nas cidades. A identidade de gênero molda a maneira como as pessoas circulam pela cidade, quais modos de transporte escolhem utilizar e os caminhos que escolhem fazer ao voltar para casa. Para as mulheres, isso pode significar a adoção de cuidado extras como forma de driblar os riscos. A ameaça constante de violência misturada com o assédio diário limita suas escolhas, poder e oportunidades econômicas.
As mulheres também são as principais responsáveis pelo trabalho de cuidado não remunerado. Em geral, além de todo o trabalho doméstico diário, que inclui cozinhar, limpar, lavar, também fica a cargo delas o cuidado de crianças, idosos, pessoas doentes ou com alguma deficiência. Essa carga de trabalho complexifica os deslocamentos das mulheres, refletindo as diversas tarefas do trabalho remunerado e não remunerado que elas têm de cumprir. Além do caminho para o trabalho, a jornada de uma mulher pode incluir o percurso realizado para levar uma criança à creche ou à escola, a ida a um posto de saúde para acompanhar um familiar doente, retirar medicamentos, ou uma parada extra no mercado após o trabalho para comprar os ingredientes para o jantar e um pacote de fraldas – para citar alguns exemplos. Se cada um desses pontos que ela precisa acessar ao longo do dia não estão localizados de forma próxima, essa mulher será forçada a acessar o sistema de transporte várias vezes e pagar por essas viagens e pelas das crianças. Se ela mora na periferia ou tem que se deslocar para cidades próximas em busca de trabalho ou serviços, poderá ter de pagar também para ter acesso a diferentes sistemas de transporte.
Para se ter uma ideia, segundo a “Pesquisa de Hábitos e Intenções de Uso no Pós-Pandemia”, realizado pela Assessoria de Pesquisa da Diretoria de Planejamento de Transporte da SPTrans entre setembro e outubro de (2021), 57% dos passageiros do sistema de transporte municipal são mulheres jovens, negras, com ensino médio completo, e com renda média familiar de R$ 2,4 mil, (classe C). A pesquisa também observou que a grande maioria dos usuários do transporte público não possui carro ou motocicleta, mas os que possuem em sua maioria são homens. As mulheres estão, portanto, mais propensas a depender do transporte público e a terem que se deslocar mais a pé, mesmo que esse sistema de transporte não contemple totalmente suas necessidades ou possa oferecer riscos, como assédio e toques indesejados.
Ainda que haja um esforço crescente para a diversificação dos espaços de poder, a maioria dos tomadores de decisão ainda são homens e significa que as principais escolhas urbanas ainda são tomadas sem levar em consideração como essas decisões afetarão as mulheres. Ao assumir a experiência masculina como o “padrão”, essas decisões tendem a reforçar os papéis tradicionais de gênero e a divisão sexual do trabalho. Esse fenômeno foi intitulado pela geógrafa canadense, Leslie Kern (2019), como a “cidade dos homens”. Segundo a autora, “[…] qualquer assentamento é uma inscrição no espaço das relações sociais na sociedade que a construiu. Nossas cidades são o patriarcado escrito em pedra, tijolo, vidro e concreto.”
Uma vez construídas, as cidades continuam a influenciar as escolhas dos indivíduos e a moldar o leque de possibilidades que cada grupo tem acesso. Nesse sentido, a forma como a cidade foi constituída pode limitar possibilidades e normalizar algumas configurações e situações de desigualdade. Logo, os espaços físicos possuem um papel importante quando queremos pensar em mudanças sociais.
O caminho para a construção de uma cidade feminista, que deixe de reproduzir desigualdades de gênero, é incluir no planejamento urbano conversas sobre gênero, feminismo e vida na cidade, para assim encontrar formas de agir que as tornem espaços mais seguros e inclusivos.
Bibliografia:
KERN, L. Feminist City: a field guide. [S.l.]: Between the Lines , 2019.
SPTRANS. Pesquisa da SPTrans aponta que mulheres são maioria dos passageiros de ônibus e que fazem menos teletrabalho. Secretaria Municipal de Transporte e Mobilidade Urbana, 2021. Disponivel em: <https://www.sptrans.com.br/noticias/pesquisa-da-sptrans-aponta-que-mulheres-sao-maioria-dos-passageiros-de-onibus-e-que-fazem-menos-teletrabalho/>. Acesso em: 31 maio 2022.